sábado, 26 de julho de 2014

Avó de tranças

Depois desse mês de férias, nosso blog volta nesse dia de Santa Ana, protetora dos avós com texto quentinho nesse fim de semana gelado de inverno.

Avó de Tranças

A avó sentava-se todo dia naquele mesmo banco, no mesmo canto, na mesma casa, na mesma rua. Com aquele mesmo rosto cansado, as duas compridas tranças caídas pelas costas e o vestido florido combinado com uma blusa de lã como sempre fazia, no frio ou calor desde... Desde que assumiu o posto de avó.
Ali no banquinho viu seus netos correndo pela casa e sorriu de seus tombos inocentes, sentiu falta quando cresceram e não apareceram mais em casa.
Mais uma vez a avó estava sentada no seu banco com suas tranças, mais uma vez naquela casa. Começava a chover. Um carro parou na frente  da calçada bem devagar, um guarda chuva se abriu na posta de trás, e depois de alguns movimentos desajeitados, a cadeirinha foi retirada e vieram, guarda chuva, cadeirinha e pessoas em passos lentos até a entrada da casa.
A avó já não se lembrava direito do nome dos netos, não por sua culpa, mas algo tirou essas memórias de sua cabeça, mas sentia que era uma visita importante.
A mulher, que já segurava o bebê em seus braços, não mais na cadeirinha, disse: “Oi, vó! Olha aqui sua bisneta”. E sentou-se ao lado no banco, com a criança dormindo quieta no colo.
A avó, mesmo sem se lembrar direito das pessoas, colocou a mão na cabeça da pequena criança e com uma carícia, abençoou sua vida. Sorriu devagar.
A menina acordou, e com seus olhos de bebê passou a explorar a casa estranha em que estava. O quadro do Sagrado Coração já desbotado pelo tempo, pendurado na parede de toda avó que se preze, os vasinhos de flor sobre pequenas toalhas redondas de crochê na estante, as almofadas de retalhos coloridos nos sofás.
Reconhecendo a casa da avó e suas mãos reconfortantes dormiu novamente.
Depois de algum tempo estaria correndo com os primos naquele piso de caquinhos alegrando a casa novamente. E a avó, a avó sentada no banco com as duas tranças emoldurando seu rosto, sorriria novamente com a bagunça dos bisnetos, ali, na mesma casa, na mesma rua.


                      Aluã Rosa



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sexta-feira, 20 de junho de 2014

O passeio do Rei

www.jornalvozativa.com Foto: Tino Ansaloni
   
   Num reino não muito distante de nós, nem muito antigo, nem muito novo, havia um Rei.
   Ah, Como era bom aquele Rei, o povo o adorava, desde os mais humildes servos e camponeses até os nobres mais nobres, todo o seu povo o amava.
   No passado, quando o reino sofria pelos ataques dos inimigos, o Rei salvou a todos com uma prova de bravura e amor nunca vista antes.
   Por todos os lugares o Rei era lembrado, exaltado. Em todas as casinhas ele se fazia presente, nos pensamentos, nas conversas, nas canções. O Rei habitava o coração de seus súditos.
   Estava disponível, sempre, em sua morada oficial, para receber a quem precisasse.
   Todas as pessoas que quisessem podiam encontrar-se com o Rei, a qualquer hora, a qualquer dia da semana. Era um refúgio.
   Lá, o Rei ouvia, aconselhava, abençoava, ou simplesmente acalentava a cada um com seu simples olhar compreensivo e amoroso.
   Mas havia um dia, uma festa, em que o rei saía de sua morada para andar pelo reino, em pessoa.
   Ah que festa o dia da caminhada do Rei, que bonito de se ver! A pessoas enfeitavam as janelas, usavam suas melhores roupas.
   Nas ruas não se via uma pedra, pois os súditos espalhavam tecidos coloridos, flores, papéis e tudo mais que poderia servir para decorar o local dos passos do Rei.
   Das pessoas mais pobres até as mais ricas e poderosas, todas se uniam para homenagear o Rei da melhor forma que conseguiam, pois sabiam que nenhum poder era maior que o dele.
   E o Rei, na hora marcada, saía pelas ruas enfeitadas mirando com seus olhos a todos seus fiéis súditos e pisando cuidadosamente por aqueles “tapetes” tão humildes e tão dignos de sua passagem.
   O Rei passava, abençoava o povo e depois voltava para sua morada onde continuava recebendo a quem precisasse, a qualquer hora.
   E pela cidade ficava o doce aroma de sua presença magnífica, na memória das pessoas seu sorriso tão acolhedor e gentil, e nos corações daquele povo ficava seu amor. Para sempre.

                 Aluã Rosa

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sábado, 14 de junho de 2014

Bandeira de retalhos

Imagem disponível em:  http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/fotos/2014/06/leitores-enviam-fotos-de-ruas-enfeitadas-para-copa.html
   
   Do teto dos bares da cidade pendem fitinhas verdes e amarelas que dançam ao bater do vento.
   De janelas, sacadas e postes, bandeiras do Brasil esvoaçam e vibram com a torcida brasileira.
   No asfalto sem movimento dos bairros, figuras ilustres, bolas e listras são pintadas nas cores da nação.
   Até as flores amarelas resolveram desabrochar em meio suas verdes folhas em comemoração.
   O dia começou diferente. Nos jornais, na televisão, nas ruas da cidade, em tudo havia um clima festivo, não era somente mais um dia ensolarado brasileiro.
   Com os olhos de todo o mundo voltados para o país e turistas, irmãos de outras nacionalidades chegando para confraternizar, para jogar, a festa estava prestes a começar, de norte a sul, em cada canto dessa terra adorada.
   Mesmo sem a casa totalmente pronta para receber os convidados, o evento aconteceria; alguns problemas, alguns atrasos, e um povo trabalhador sofrendo com os desmandos de quem deveria organizar tudo, mas a família de brasileiros não negou seu sorriso a cada um que queria torcer, vibrar.
   Aconteceu, cada coração brasileiro pulsou mais forte, e em coro bradou o hino de sua terra mãe, a bola rolou, as mãos se levantaram, as gargantas gritaram, e a união tomou conta de vez de cada pessoa, em cada estado, em barracos, sítios e mansões, tudo se tornou uma só massa que vibrava.
   Começou, enfim, a copa do mundo, e não há mal em participar dessa grande festa entre nações. Já está acontecendo.
   De bandeira em bandeira, de fita em fita, a cada pincelada verde, amarela ou azul que é traçada, o chão do nosso país se colore para brindar com todas as nações sua humilde festa do futebol. Todos juntos, numa grande bandeira de retalhos e rostos que se estica para abraçar o mundo.

           Aluã Rosa


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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Oratório


   Com suas pequenas e tortas estrelinhas pintadas de amarelo no fundo azul da madeira envelhecida, os dois pequenos vasos sempre com flores frescas do quintal e os anjinhos rechonchudos já descascando, velava toda a casa o antigo oratório do alto da cômoda onde se apoiava, protegendo com suas frágeis paredes a pequena imagem da Vigem Maria e um crucifixo que os antepassados, imigrantes italianos, haviam trazido de seu país.
   A família, de muita fé, conservou muito bem o oratório que os acompanhou na difícil vinda ao Brasil. Trouxeram-no em meio às roupas da bagagem naquele navio apinhado de pessoas, e passavam os piores momentos da viagem agarrados àquela malinha que escondia precioso tesouro.
   Desde a chegada daqueles italianos, o oratório nunca mudou de lugar, na humilde casinha de poucos móveis, sobre a cômoda onde se guardavam as roupas, à luz do grande lampião que clareava toda a residência.
   Assistiu partos, prantos, gritos de alegria.
   Gerações e gerações passaram horas ajoelhadas rezando a sua frente. E o oratório sempre lá, sempre disposto a mais um Glória ao Pai, assim como os ouvidos de Deus que nunca se cansam de acolher as nossas preces e pedidos de perdão.
   Os respingos de cera amarela se sobrepunham no lugar onde tantas vezes foram acesas velas em agradecimentos, novenas, festas.
   Nas datas mais importantes do ano era difícil algum horário em que ninguém estivesse dedicando alguma atenção ao oratório.
   Todos os dias depois do jantar, a família toda se reunia para rezar por mais um dia vivido.
   Daquela forma, mães se tornaram avós, depois bisavós, tataravós. Muitos fios de cabelo tornaram-se brancos.
   A família modificou-se. Cresceu, trabalhou, evoluiu, mas sua base sempre continuou a mesma, seu alicerce foi mantido, e com isso, por mais que crescesse, sempre estaria firme.
   Os novos, mesmo os que nunca tiveram contato com os primeiros donos daquele oratório, receberam por herança a fé, e continuam a propagá-la, não deixam que a chama se apague, que tudo se desfaleça.
   Assim, mesmo com as tantas décadas já passadas, e as que ainda prometem vir, as portas daquele oratório nunca se fecharam uma vez sequer, nem hão de ser fechadas, pois muito mais do que suas tortas estrelinhas amarelas e suas imagens sagradas, guarda as firmes raízes daquela família, o amor e o cuidado de um Pai por seus filhos.

Aluã Rosa



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sexta-feira, 2 de maio de 2014

Pipocas na estação

  

    Mesmo depois de tanta insistência, Dora fora obrigada a ir para o colégio interno na capital.
   Seus pais não aprovavam a íntima amizade com o vendedor de pipocas da pracinha.
   Na noite anterior, tinham se encontrado pela última vez, conversado pela última vez. Comeram o último saquinho de pipoca juntos, sentados na escada do coreto.
   É difícil viver em uma época em que as famílias ricas não permitem o relacionamento dos seus com pessoas de classes mais baixas.
   Simão, o pipoqueiro, não se conformava com a partida de Dora, e ela, com a distância dele e suas ingênuas conversas.
   O apito do trem soava por toda a estação, prestes a partir. Em meio a vapores e passantes,    Dora saltou da plataforma para o vagão.
   Do outro lado da estação, Simão corria entre as pessoas para atravessar o saguão e chegar até perto do trem, queria se despedir mais uma vez.
   Amassado, bem seguro em uma das mãos do rapaz, ia um saquinho de pipoca.
   Após um encontrão com os pais de Dora na entrada da estação que quase o fez perder seu presente, precisou correr mais.
   Percebeu de repente as rodas começaram a se movimentar, um súbito de tristeza e força de vontade se misturaram em seu corpo,saltou, correu o mais que pôde, conseguiu avistar a janela de sua tão adorada amiga.
   Dora, sorridente e surpresa abriu a janela a seu lado, Simão corria agora rente ao limite da plataforma. Com o braço esticado, tentava entregar o saquinho à Dora, como um presente, uma lembrança, como um beijo.
   Sentiu braços fortes o segurarem, foi puxado para trás, o saquinho voou de sua mão.
   Entre pipocas, guardas e gritos, desfazia-se o sonho de um pobre coração.

   Aluã Rosa

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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Amigo passarinho

  

   Todos os dias enquanto caminhava para a escola, a um certo ponto do caminho era surpreendido por um canto de  passarinho vindo de uma grande árvore.
    Eu olhava pra cima, procurava entre os galhos, mas nunca via nada além das folhas.
    Muitas vezes captava algum movimento no meio da copa, ficava em dúvida se era vento ou o tal cantor, logo desistia da procura e voltava a caminhar rumo às aulas.
    Em dias em que estava mais inspirado, saía mais cedo de casa e levava alguns pedaços de pão, parava ao pé da árvore, enroscava os petiscos nos galhos mais baixos e esperava. O passarinho não descia para comer. Quando voltava da escola, o pão não estava mais no lugar.
    Me impressionava muito o fato de o passarinho nunca deixar de cantar, nenhum dia. Mesmo quando chovia ou fazia muito frio.
    Um dia, já irritado pelo jogo de esconder do passarinho cantor, num ato não pensado, abaixei, peguei uma pedra e atirei em direção ao som na árvore. Houve um barulho de asas batendo nas folhas, o canto parou, a pedrinha caiu no chão. Percebi a besteira que tinha feito e entrei em desespero. Como alguém poderia ser tão egoísta ao ponto de tentar machucar um pobre animal pela própria curiosidade?
    “Passarinho! Passarinho!” Gritei preocupado. Mas logo o cantor me respondeu, num assovio atordoado.
    Naquele dia não continuei meu caminho, passei a tarde sentado nas raízes da árvore para ter certeza da recuperação do passarinho. Ele cantou algumas vezes, a cada melodia melhorava um pouco, o susto tinha passado. Quando o sol começou a se esconder no horizonte e o céu ficou alaranjado percebi que precisava voltar para a casa.
    “Me desculpe, passarinho! Eu só queria conhecer a cor das suas penas” Falei para o alto, para meu amigo cantor.
    Um farfalhar nas folhas foi descendo pelos galhos até chegar à minha altura, um longo pio me cumprimentou e o pequeno passarinho empoleirou-se em meu braço. Cantou uma melodia nova e afinada, exibiu suas cores e voltou para a árvore.
    Nos dias que vieram depois, sempre que passava pela árvore, percebia as penas do cantor se movendo nos galhos mais baixos durante o pequeno show entre as folhas.
    Os meses passaram rapidamente e o inverno chegou. Talvez meu amigo tenha migrado, não houve despedida, na verdade, nem me lembro da última vez em que ouvi seu canto, mas sei que quando a primavera deu o ar de sua graça, eu já caminhava desatento e sem esperanças para a escola quando um som me despertou.
    Trazendo de volta a alegria daquela árvore o passarinho cantou. Ecoou.

Aluã Rosa


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sábado, 19 de abril de 2014

Velado sorriso


   A umidade da já findada garoa pairava pelo ar e ajudava a brisa a cortar mais gelidamente a pele daquelas pessoas.
   O chão de paralelepípedo fazia leves barulhos a cada passo da procissão que seguia.
   Roupas escuras, janelas fechadas, o som de um coro desarmônico de vozes em oração. Chegara a semana santa.
   A cidade desfazia seu sorriso interiorano e assumia a seriedade do acontecimento. O clima era profundo, não chegava a denotar medo, mas causava um certo recolhimento em cada ser, em cada família, em cada 
palavra.
   Os dias caminhavam mais calmos e a cada celebração o povo se reunia para se aproximar cada vez mais do auge, do clímax, da Paixão.
   Todos os anos, desde muito tempo atrás isso se repete; os mesmos sons, os mesmos ritos, o mesmo sentido. Faz parte da vida.
   Mesmo os mais afastados voltam nessa época, talvez por ter aprendido desde crianças a importância dessa semana, ou simplesmente por sentir ar diferente presente nesses dias, a grandioso significado de tudo.
   É assim. E assim caminha a vida, rememorando os passos do passado que permitiram a existência desse presente. 
   O vento, o frio, os dias silenciosos. De uma noite angustiante à outra de um fogo novo, a traição, a entrega, a consumação. Tudo acontece novamente aos nossos olhos.
   Na aurora de um novo dia, a vida renasce, o sol aquece novamente os corações, a esperança é celebrada.    É domingo, é Pascoa. E no domingo... A cidade sorri novamente.

         Aluã Rosa

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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Uma história sobre maçãs

   
Na larga rua, em meio aos carros, trabalhava a vendedora de maçãs.
   Com sua velha cesta e sincera simpatia, ganhava a vida vendendo as vermelhas e suculentas maçãs do sítio de seu tio.
   A rua era movimentada, muitos carros iam e vinham, buzinavam, passavam reto, quando paravam eram abordados pela vendedora.
   Órfã, criada pelo tio, precisou deixar a escola para cuidar do pai postiço que estava doente.    Muitos questionavam a situação da moça, a doença do tio, os estudos abandonados, as maçãs.
   Nunca havia uma explicação.
   As maçãs eram muito significativas na vida dos dois. Quando pequena, a vendedora foi salva da fome pelas maçãs do tio, agora, queria poder retribuir o cuidado, com as mesmas frutas que a salvaram na infância.
   O tio melhorava à medida que as maçãs eram colhidas.
   Um dia a moça não apareceu com seu cesto na grande rua. Passados cinco dias, nem sinal da vendedora. Somente algumas pessoas perceberam sua ausência.
   Não havia mais maçãs para vender, a macieira parou de dar seus frutos. Ventos frios balançavam suas folhas e as cortinas do quarto do tio doente.
   A vendedora agora trabalhava o dia todo em função da saúde do tio, que piorou muito depois do fim das maçãs.
   Olhando pela janela, a moça avistou algo surpreendente, em meio às folhas já meio secas da árvore, pendia uma grande e vermelha maçã. Era apenas uma, não ajudaria no tratamento se vendida.
   Saiu da casa, colheu a grande fruta e levou para o quarto do tio. Colocou sobre o criado mudo e esperou. O forte aroma tomou conta de todo o ambiente, o senhorzinho deitado respirou mais profundamente para sentir melhor. Um sorriso de agradecimento se desenhou em seu rosto.
   A vendedora, salva pelas maçãs do tio quando criança tentou retribuir o gesto, mas ao invés disso, fechou os olhos e sentiu também o aroma que vinha do criado mudo.
   No doce cheiro que envolvia o quarto, sonharam, e chegou ao fim a história dos dois. E das maçãs.


     Aluã Rosa

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sábado, 5 de abril de 2014

Grand Circo Saudade

   


   A lona furada já não abrigava tantos risos como antigamente.
   Rodando cidades e estados sobre aquele caminhão velho, muita história tinha se passado por todos aqueles objetos, equipamentos, todas aquelas cores desbotadas.
   Niam olhava tudo aquilo sentindo em seu peito um misto de nostalgia e tristeza.
   Filha de um mágico e uma amazona, crescera em meio a tudo aquilo, aqueles brilhos, aquelas palmas, o som de tanta risada.
   Hoje, em seu aniversário de 18 anos, pulsava em seu peito como nunca o sonho que sempre cultivou desde a infância. Morar em um lugar fixo, ter uma casa de tijolos, um endereço; não que a vida no circo fosse ruim, muito pelo contrário, amava a vida sobre rodas, dormindo sob tendas e estrelas, mas queria sentir o novo, o fixo. Sua aventura seria a rotina.
   Naquela manhã chegariam a mais um destino, o Grand Circo Saudade seria montado num campinho, ao lado da praça central da cidade e da igreja matriz de Colina Grande; era a chance de concretizar seu plano.
   Foi muito dolorido, mas a decisão estava tomada e Niam não voltaria atrás.
   Naquela escura noite de verão começava mais um espetáculo do Saudade, os palhaços maquiados, os truques preparados, as luzes acesas, toda a magia do show escondia uma família preocupada e inconformada pela decadência de seu ganha pão. As esperanças de um bom público depositadas a cada sessão eram sempre maiores.
   Depois de seu número, o primeiro apresentado, Niam correu para sua tenda, pegou a mala cuidadosamente disfarçada entre os cobertores, carregou Palhaço, seu coelho de estimação, colocou aos pés da antiga imagem de São Filomeno, padroeiro dos artistas de circo, a carta cheia de lágrimas e explicações a seus pais e aos amigos de tenda, vestiu um casaco grande demais e saiu.
   Começava a chover na cidade, as gotas de água escorriam frias como as lembranças de sua encerrada vida sem paradeiro que vinham à sua cabeça enquanto podia ver a luminosidade fosca vinda de dentro da lona. Andava depressa com medo de desistir e desfazer os passos já dados.
   Triste por abandonar sua família, perdida por não saber onde iria se abrigar, mas feliz por estar realizando seu sonho, estar crescendo, evoluindo, sabia que seria difícil, que pensaria em desistir várias vezes, mas ia tentar, pois sabia também que quando fosse necessário, quando as lágrimas fossem numerosas demais poderia procurar nos jornais, pedir informações, retornar até sua lona e abraçar o Saudade novamente.
   Ao fim do espetáculo, debaixo da forte chuva, a equipe do circo agradecia ao público e deixava naquela colina, uma raiz de saudade.

 Aluã Rosa

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sexta-feira, 28 de março de 2014

O teatro de Cosme


  Os calorosos aplausos já minguavam enquanto as cortinas empoeiradas iam se fechando. Depois dos agradecimentos, soltando as mãos, toda a trupe comemorou entre abraços o encerramento de mais um espetáculo.
   Enquanto alguns limpavam a maquiagem, outros desligavam as luzes do antigo teatro alugado. Um suave cheiro de mofo pairava no ar, o acolchoado das poltronas estava desbotado e o chão rangia ao ser pisado, mas era um ambiente acolhedor.
   Em tempos passados tinha sido famoso, recebido artistas renomados e frequentado por nobres figuras da região.
   Nos últimos anos tinha funcionado poucas vezes, quando alguma pequena companhia se apresentava na cidade.
   Sentado no palco, ainda usando a boina de seu personagem, Cosme observava o espaço do teatro e seus colegas atores. Pensava em sua trajetória, a saída de casa, a criação da trupe junto com amigos. Baixou os olhos. Sorriu.
   Muitas vezes passava horas refletindo sobre como, com sua pequena trupe e seus sonhos teatrais poderia marcar o mundo, a cidade, ou no mínimo uma pessoa.
   Seguir os sonhos que teve foi difícil, abandonar sua vida anterior, a segurança do emprego para viver do que gostava, do que acreditava. Não havia nada melhor, para ele, do que o frio na barriga a cada descortinar de uma nova peça, ver os sorrisos arrancados de crianças e adultos e ouvir os aplausos da plateia ao fim de cada apresentação.
   Acreditava que para marcar o mundo não eram necessários grandes movimentos, projetos elaboradíssimos ou uma invenção surpreendente, estava contente em saber que fez a vida de algumas pessoas mais feliz, encantada, que pôde construir minutos de magia que ficariam marcados para sempre na memória simples das crianças, que fez pessoas já desacreditadas retomarem o brilho nos olhos mostrando a beleza de poder sonhar, sonhar acordado e colorir o caminho da vida com os lápis de cor da imaginação. Cosme marcou o mundo.

   Enquanto os pensamentos brincavam na cabeça de Cosme naquela noite, nas tortuosas ruas do entorno do teatro, pessoas retornavam para suas casas com os cachecóis balançando ao vento frio, tremendo, porém, com a alma aquecida pelas maravilhosas aventuras passadas a pouco no pequeno palco lustrado do teatro.

Aluã Rosa

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sexta-feira, 21 de março de 2014

Malabares de Outono

   

    Pelas grades da janela entravam os raios do sol que nascia inaugurando um novo outono.
   Cinco bolinhas de borracha repousavam na mesa de centro da sala ao lado de uma maleta.    No quarto ao lado, dois rostos cansados ganhavam cores a cada pincelada que desenhavam vagarosamente as curvas de inocentes faces de palhaço.
   O som de sirenes vinha de um lugar incerto. Buzinas anunciavam o começo de mais um dia de trabalho.
   Saíram do apartamento o casal, o bebê, bolinhas, garrafas e um chapéu. Por entre desconhecidos, carros e a efervescência daquela enorme cidade, partiram.
   No primeiro ônibus, o mesmo que pegavam todos os dias, alguns rostos conhecidos sorriam para a criança, outros achavam estranho o casal palhaço tomando o circular. Depois de 40 minutos, desceram.
   A curta caminha os levou até a creche pública em que o filho passava o dia.
   Tomando outro ônibus, segiram para o centro.
   Mal batia 8:00h no relógio e vestiram-se com as roupas coloridas do ofício. Uma saia surrada cheia de pompons, um colete fechado com botões enormes, fitas, uma gravata.
   No primeiro sinal vermelho dos carros, descortinou-se o asfalto e o trânsito deu lugar a arte.
   Os rápidos malabaristas enchiam de cores a faixa de pedestres. Bolinhas e garrafas voavam e rodavam em meio aos reflexos dos retrovisores.
   Depois de cada espetáculo, os sorridentes artistas passavam seu chapéu entre os carros. Motoristas encantados faziam-se plateia e contribuíam, alguns erguiam os vidros, outros ignoravam.
   Era um jeito diferente de ganhar a vida, fazia-os felizes.
   Ao fim de cada tarde, depois de incansáveis apresentações, contavam seu mirrado cachê e faziam o caminho de volta para a casa com o filho de 1 ano.
   Cansados e queimados de sol por fora, mas por dentro, felizes por poderem alimentar a família com moedas e amor, e alimentar aquela metrópole com um pouco de arte a cada dia.

Aluã Rosa

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sexta-feira, 14 de março de 2014

O anjo do chafariz


 No meio da praça daquela pequena cidade, tomando chuva e sol, vento e geadas, desde muito tempo, parado ficava o anjo em seu úmido pedestal.
   Invernos e verões passavam sem que quase ninguém se lembrasse dele. Ali, com suas várias camadas de tinta de várias épocas, os olhos fixados no além, as mãos postas a um louvor em jatos d’agua e ao som calmo da água corrente, velava ele toda a praça com suas asas de cimento.
   Muitas vezes, ignorado por todos que se divertiam nas tardes de domingo, servia como pouso para os pombos. Em certas épocas, chegou a ter parte de seu corpo coberta por musgos.
   Bolas o acertavam enquanto crianças brincavam, folhas o acariciavam nas tempestades ventosas. O anjo sempre respeitou sua função de estátua.
   Em dia de procissão músicas alegres o rodeavam, na primavera, flores perfumavam sua volta. Quem dera todos fossem como os pássaros que o visitavam.
   A cidade evoluía, gerações se sucediam, vidas começavam e terminavam diante do anjo e seu discreto sorriso.
   A população passava apressada e não tinha tempo para deleitar de sua companhia silenciosa. Desde o primeiro raio de sol da manhã até a última estrela da noite de todos os dias ele esperou.
   Um braço quebrado, uma asa trincada.
   Um menino e seu avô pararam para observar. Os olhos do avô brilharam de alegria ao rever o anjo amigo que tanto admirou secretamente na infância, os do neto, saltaram em encanto pela simpatia do encontro.
   Um cochicho. Os dois saíram.
   No meio daquela noite, o anjo retomou seu brilho novamente, ganhou asas novas e um braço consertado.
   Quando amanheceu, sorrisos e mãos apontavam para o anjo. Todos perceberam e se alegraram pela reforma. Ninguém sabia quem era o benfeitor, mas o agradeceram no coração.
   Muitas pessoas passavam devagar para apreciar a beleza do velho anjo do chafariz, pessoas que mesmo sem demonstrar, admiravam e simpatizavam com seu jeitinho parado e frio.
   Um pouco a frente, num banco voltado para o chafariz, um velho e um menino riam com as mãos sujas de tinta.

Aluã Rosa

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sexta-feira, 7 de março de 2014

Casinha


No fim daquela rua de paralelepípedos ficava a casinha.

Um amarelo desbotado coloria suas paredes, janelas e portas de madeira pintadas de branco ressecavam ao sol, entreabertas. O telhado tinha alguns buracos.

O capim crescia no jardim, já alto.

Nas noites em que a lua brilhava com mais intensidades, uma claridade esbranquiçada deixava o lugar com um aspecto mais fantasmagórico.

As crianças do bairro rondavam o terreno para investigar sobre as lendas que ouviam.

Ninguém ousava entrar.

Num dia, quando ninguém esperava, um caminhão de mudança estacionou na frente da casinha; desceram móveis muitíssimo antigos e objetos estranhos encobertos por tecidos brancos. Toda a vizinhança se perguntava quer iria habitar aquele sinistro endereço.

Por dias, viu-se a movimentação de encomendas entrando naquela construção, mas ninguém falava nada, explicava nada, arrumava nada. Os carregadores simplesmente deixavam as coisas e iam embora.

Ao fim da semana tudo parou, imaginavam que enfim o novo morador apareceria, ou que, no mínimo, todo o mato que rodeava a casa seria cortado, e o local, limpo.

No entardecer daquela sexta-feira, um carro vinho, todo polido, chegou na rua, andou devagar, parou em frente à casinha e uma das portas de abriu. Nada saiu do carro, ninguém desceu.

As janelas da casinha abriram e fecharam, batidas pelo vento.

O carro seguiu em frente.

Os vizinhos olhavam assustados entre as cortinas de suas casas.

A brisa leve trouxe o som de uma coruja que piava distante.

O dia seguinte amanheceu mais escuro e frio, as casas pareciam mais duras, mais distantes, a população daquele lugar agora era diferente, sem vida, sem nada.

Ninguém gostava de cruzar aquela rua, mesmo sendo uma passagem necessária para algumas pessoas, procuravam fazer outro caminho, por lugares mais alegres, mais normais.

Investigações foram abertas, curiosos apareceram para analisar o que teria acontecido com os moradores daquele lugar.

A cidade se voltou para aquela rua; soluções foram propostas, campanhas realizadas, a melancolia pairava sobre aquelas pedras de paralelepípedo.

Das ideias mais estranhas, uma muito simples foi aplicada. Numa manhã clara de sol, as pessoas mais alegres da cidade foram convocadas, se vestiram com as mais diferentes cores, entraram na rua, cantaram, fizeram graça. Alguns se atreveram a pintar de cores quentes as paredes das casas, distribuíram abraços, sorrisos e olhares felizes. Chegando perto da casinha, esforçaram-se e conseguiram entrar, a misteriosa onda de tristeza que se instalara nos cômodos desapareceu, talvez tenha fugido da felicidade que desfilava por aquela rua.

Tudo voltou ao normal.

Aluã Rosa



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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Carnaval depois do baile


  As marchinhas já começavam a tocar no salão do clube Água Clara, serpentinas e bandeirolas de papel prendiam do teto e balançavam levemente.
   Na entrada, a conhecida confusão gerada pela pressa das pessoas em entrar na festa, todas ansiosas para aproveitar ao máximo aquele grande evento que só acontecia uma vez por ano.
   Atordoado com a movimentação e preocupado em não deixar entrar ninguém sem convite, Jonas, o porteiro, sorria de forma automática para todos os foliões com as mais variadas fantasias.
   Jonas não estava fantasiado, mas sim com seu uniforme habitual, que o sinalizava como o conhecido porteiro do clube.
   A cada pessoa que entrava, um convite a mais era depositado na caixinha por Jonas. Cada folião daquele carnaval, entrava com uma fantasia diferente, talvez carregassem sonhos em suas vestes, ou somente brincadeiras.
   Adorava aquela profissão por causa disso, ao mesmo tempo em que sua imagem ficava marcada na cabeça das pessoas, as pessoas deixavam pinceladas em sua vida. Cada sorriso que passava era uma alegria para ele, cada perfume que suavemente sentia era uma viagem por histórias desconhecidas.
   Entre todos que entravam, uma colombina de olhos muito escuros e sorriso tímido entregou seu ingresso. Aquele simples gesto transformou o ar da festa para ele e para ela.
   A colombina não queria deixar a entrada do baile, mas teve de entrar, o porteiro queria que a festa acabasse para ver a colombina passar de volta pela porta.
   As músicas tocaram, o confete choveu e, ao som das badaladas da madrugada, os convidados começaram a sair. Em pouco tempo, Jonas percebeu que praticamente todos haviam saído, todos menos a colombina.
   Com as portas fechadas e os funcionários do clube comendo alguns petiscos e aproveitando o disco que ainda rodava, entrou no salão; em uma mesa ao canto, sentada, estava a colombina, tão impecável como se não tivesse dançado um passo sequer, e não tinha.
   Lena havia esperado com os guizos de sua fantasia por todo o baile, até o fim, pensando no porteiro e enfim, ele apareceu.
   Se encontraram no meio do salão sujo de confetes, iluminado por reflexos de um globo e sorriram, o único sorriso que valeu a pena para aquele porteiro e o único dado sem nenhuma timidez pela colombina.
   Enfim aquela festa foi completa, e o carnaval dos dois serpentineou até o amanhecer entre danças, flertes e varridas no salão. Nada demais aconteceu, o porteiro e a colombina teriam um ano inteiro até que pudessem se fantasiar de casal no próximo carnaval.


                                       Aluã Rosa


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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A pequena loja de histórias

  
 Competindo seu espaço na rua com os grandes lojões de variedades, estava ela, pequena e em cores discretas; uma porta com sineta ao lado de uma janela improvisada como vitrine faziam a fachada do estabelecimento, que, por muitas vezes era ignorado pelos passantes.
   “Loja de histórias” era o que dizia o letreiro, sem explicações, essa era a única definição. Não se tratava de uma livraria ou de uma empresa de contadores  de histórias, lá dentro você poderia encontrar o que muitas pessoas desprezam, esquecem, jogam fora.
   Por todas as prateleiras, cantos, caixas, em qualquer lado em que se pudesse olhar no pequeno cômodo, via-se garrafas. Garrafas de vidro, de plástico, de lata, garrafas compridas, roliças, coloridas. Todas vazias.
   Dante, o atendente e também dono da loja, passava o dia atrás de um minúsculo balcão esperando por algum cliente que pudesse entrar, mesmo que sem compromisso, sem levar nenhum produto, pelo menos que perguntasse o sentido daquilo tudo.
   Quase três anos mantendo seu projeto, alimentando diariamente a mesma esperança e nunca lhe havia aparecido alguém interessado. Três anos de sua juventude trabalhando em algo que nunca fora apreciado por ninguém.
   Num fim de tarde, já no término do encerramento do expediente, quatro pessoas entraram na loja. A felicidade, o espanto e a ansiedade de Dante eram tão grandes que nem percebeu que se tratavam dos seus melhores amigos do tempo da escola. Desde a formatura não os via, tinham perdido.
   Os cinco amigos se abraçaram, conversaram, e relembraram como eram felizes quando estudavam juntos. Um dos amigos tinha resolvido empenhar todas as suas forças na tentativa de buscar cada um e poder juntar novamente o grupo.
   Em meio as conversas, foi  impossível que não viesse a pergunta. “Mas afinal, qual a explicação pra essas garrafas?”.
   Como sempre tinha sonhado, Dante começou sua explicação.
   “Acredito que cada uma dessas garrafas, ao ser esvaziada teve uma história diferente, que cada uma delas participou de uma festa diferente, de despedidas, de reencontros como o nosso, com choro ou muito riso; essas histórias ficam guardadas dentro delas esperando que alguém as relembre ou simplesmente guarde junto de si. Ofereço a quem quiser, e enquanto ninguém  aceita, tenho todas as histórias aos meus cuidados.”
   Um pouco surpresos com o pensamento do amigo, mas também tocados por aquela sensibilidade, os quatro visitantes o convidaram para uma pequena comemoração de reencontro.
   Sairiam e poderiam se divertir do mesmo modo como quando eram mais jovens. No meio do caminho, uma parada para comprar um vinho.
   Dante não seria mais o solitário vendedor de histórias, teria sempre seus amigos para apoiá-lo, mas naquela noite não precisaria se preocupar com o futuro. Naquela noite ia poder gravar sua própria história naquela garrafa com os amigos.


                                                    Aluã Rosa

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