sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A negra e o camafeu

 Noite passada ao ser obrigado a arrumar meu quarto, tive de tirar tudo do lugar e no meio da arrumação sentei-me na cama para descansar um pouco, foi quando percebi um leve brilho dourado vindo debaixo de minha escrivaninha, de algum modo sabia do que se tratava; foi como se toda aquela madrugada tão macabra e assustadora passasse como um filme em minha mente, ainda mais pelo fato de que tudo acontecera exatamente ali, em meu quarto.



  Estava claro lá fora, como numa típica madrugada nordestina; em meu quarto, com as cortinas fechadas, a penumbra consumia todo o ambiente, exceto por um canto onde uma vela sobre um velho criado-mudo marrom que resistia à escuridão. Estava cansado, mas a insônia não me deixava dormir, então para passar o tempo perambulava pelo quarto, e fui assim até as três; acabei por deitar-me e cai no sono.

  Aquele brilho ficava cada vez mais forte à medida que as lembranças iam aparecendo. A essa altura qualquer dúvida deixara de existir, era o camafeu. Peguei-o e ao abri-lo a imagem era horrenda – gritei.

  Não sei se era um cântico ou um grito de dor, mas viera forte e me acordara, levantei-me assustado e olhei para o relógio, minha visão ainda aturdida pelo despertar brusco não me permitiu ver as horas. Esfreguei os olhos esforçando-me para enxergar algo, porém a escuridão era maior agora, a vela tinha se apagado. Fui até a janela e abri as cortinas a fim de trazer um pouco de claridade ao ambiente; espantei-me ao ver que o céu enegrecera, explorei o jardim em busca de um foco de luz, foi quando a vi, seu longo vestido branco-marfim a destacava de todo o resto, sua pele negra dava-lhe um contraste fascinante, seus cabelos encaracolados brilhavam úmidos pelo sereno, o rosto não conseguia ver, pois estava voltada para algum ponto no horizonte, de repente começou a bailar pelo jardim. Parou.
  Quanto mais a observava mais minha respiração fazia-se ouvir. Num instante olhava para longe como da primeira vez e no outro me encarava decididamente. Não tive reação e fiquei ali, observando-a a me observar; de repente sumiu. Aproximei-me da janela tentando achá-la e ao mesmo tempo encontrar uma explicação para tudo aquilo.
  Fechei as cortinas, reacendi a vela sobre o criado-mudo e acendi outra, esta coloquei em cima da escrivaninha. Virei-me para o centro do quarto onde ficava minha cama.
 - Oh meu Deus! O que é isto? – gritei perplexo.
   Ela estava deitada ali na minha frente, seu volumoso vestido caia pelas beiradas da cama. Tentei correr, mas o estado de choque em que me encontrava inibira quaisquer tentativas de reação; ficamos ali por minutos: eu imóvel em pânico e ela serena, imaculada, maravilhosa. Agora conseguia ver claramente, mesmo com a baixa luminosidade, sua face, era de um negro vivo, seus traços sutis e sem nenhuma imperfeição.


  Já acostumado com sua presença, recobrei os sentidos, andei em sua direção e sentei-me ao seu lado à cama; realmente era de uma beleza rara, acariciei sua face e percebi que tinha junto ao colo um colar dourado com um pingente daqueles que se colocam fotos; um camafeu, abri-o com esperança de saber um pouco mais, na verdade apenas saber, sobre aquela mulher que repousava tão calmamente em minha cama, no entanto não tinha nada lá, fechei-o. Olhei novamente para seu rosto, mas agora me olhava, seus olhos vermelhos cor de sangue emanavam uma dor tão grande que até consegui sentir, desta vez meus reflexos funcionaram e me levantei com tamanha velocidade que me desequilibrei e caí esbarrando na vela sobre a escrivaninha que fora arremessada contra as cortinas; a força do impacto fora tão forte que fiquei num estado de semi-inconsciência, mas pude perceber que havia fogo por toda a parte e que ela viera até mim e beijara-me a boca. Desmaiei.

  Não consigo me lembrar do que aconteceu depois, só recobrei os sentidos no hospital, o estranho é que mesmo com o incêndio não tive ferimentos graves.
  A imagem que agora residia no camafeu era horrenda.
  Em um papel fotográfico velho uma linda negra ao lado de um rapaz queimado, com chagas espalhadas por todo o corpo, em sua face era evidente a agonia e a dor, já na mulher uma satisfação verdadeiramente atordoante.

  Enterrei o camafeu longe de casa e espero nunca mais ter de ver aquela mulher novamente, mas parece que quanto mais tento apagá-la de minhas lembranças mais ela vem nas madrugadas atormentar meus sonhos. 

                                                                      Samuel Bernardes


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