Noite passada ao ser obrigado a arrumar meu
quarto, tive de tirar tudo do lugar e no meio da arrumação sentei-me na cama
para descansar um pouco, foi quando percebi um leve brilho dourado vindo
debaixo de minha escrivaninha, de algum modo sabia do que se tratava; foi como
se toda aquela madrugada tão macabra e assustadora passasse como um filme em
minha mente, ainda mais pelo fato de que tudo acontecera exatamente ali, em meu
quarto.
Estava claro lá fora, como numa
típica madrugada nordestina; em meu quarto, com as cortinas fechadas, a
penumbra consumia todo o ambiente, exceto por um canto onde uma vela sobre um
velho criado-mudo marrom que resistia à escuridão. Estava cansado, mas a
insônia não me deixava dormir, então para passar o tempo perambulava pelo
quarto, e fui assim até as três; acabei por deitar-me e cai no sono.
Aquele
brilho ficava cada vez mais forte à medida que as lembranças iam aparecendo. A
essa altura qualquer dúvida deixara de existir, era o camafeu. Peguei-o e ao
abri-lo a imagem era horrenda – gritei.
Não sei
se era um cântico ou um grito de dor, mas viera forte e me acordara,
levantei-me assustado e olhei para o relógio, minha visão ainda aturdida pelo
despertar brusco não me permitiu ver as horas. Esfreguei os olhos esforçando-me
para enxergar algo, porém a escuridão era maior agora, a vela tinha se apagado.
Fui até a janela e abri as cortinas a fim de trazer um pouco de claridade ao
ambiente; espantei-me ao ver que o céu enegrecera, explorei o jardim em busca
de um foco de luz, foi quando a vi, seu longo vestido branco-marfim a destacava
de todo o resto, sua pele negra dava-lhe um contraste fascinante, seus cabelos
encaracolados brilhavam úmidos pelo sereno, o rosto não conseguia ver, pois
estava voltada para algum ponto no horizonte, de repente começou a bailar pelo jardim.
Parou.
Quanto mais a observava mais minha respiração fazia-se ouvir. Num
instante olhava para longe como da primeira vez e no outro me encarava decididamente.
Não tive reação e fiquei ali, observando-a a me observar; de repente sumiu.
Aproximei-me da janela tentando achá-la e ao mesmo tempo encontrar uma
explicação para tudo aquilo.
Fechei as cortinas, reacendi a vela sobre o criado-mudo e acendi outra,
esta coloquei em cima da escrivaninha. Virei-me para o centro do quarto onde
ficava minha cama.
- Oh meu Deus! O que é isto? – gritei
perplexo.
Ela estava deitada ali na minha frente, seu volumoso vestido caia pelas
beiradas da cama. Tentei correr, mas o estado de choque em que me encontrava
inibira quaisquer tentativas de reação; ficamos ali por minutos: eu imóvel em
pânico e ela serena, imaculada, maravilhosa. Agora conseguia ver claramente,
mesmo com a baixa luminosidade, sua face, era de um negro vivo, seus traços
sutis e sem nenhuma imperfeição.
Já acostumado com sua presença, recobrei os sentidos, andei em sua
direção e sentei-me ao seu lado à cama; realmente era de uma beleza rara,
acariciei sua face e percebi que tinha junto ao colo um colar dourado com um
pingente daqueles que se colocam fotos; um camafeu, abri-o com esperança de
saber um pouco mais, na verdade apenas saber, sobre aquela mulher que repousava
tão calmamente em minha cama, no entanto não tinha nada lá, fechei-o. Olhei
novamente para seu rosto, mas agora me olhava, seus olhos vermelhos cor de sangue
emanavam uma dor tão grande que até consegui sentir, desta vez meus reflexos
funcionaram e me levantei com tamanha velocidade que me desequilibrei e caí
esbarrando na vela sobre a escrivaninha que fora arremessada contra as
cortinas; a força do impacto fora tão forte que fiquei num estado de semi-inconsciência,
mas pude perceber que havia fogo por toda a parte e que ela viera até mim e
beijara-me a boca. Desmaiei.
Não
consigo me lembrar do que aconteceu depois, só recobrei os sentidos no
hospital, o estranho é que mesmo com o incêndio não tive ferimentos graves.
A imagem que agora residia no camafeu era
horrenda.
Em um papel fotográfico velho uma linda negra
ao lado de um rapaz queimado, com chagas espalhadas por todo o corpo, em sua
face era evidente a agonia e a dor, já na mulher uma satisfação verdadeiramente
atordoante.
Enterrei o camafeu longe de casa e espero
nunca mais ter de ver aquela mulher novamente, mas parece que quanto mais tento
apagá-la de minhas lembranças mais ela vem nas madrugadas atormentar meus
sonhos.
Samuel Bernardes
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