sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Carnaval depois do baile


  As marchinhas já começavam a tocar no salão do clube Água Clara, serpentinas e bandeirolas de papel prendiam do teto e balançavam levemente.
   Na entrada, a conhecida confusão gerada pela pressa das pessoas em entrar na festa, todas ansiosas para aproveitar ao máximo aquele grande evento que só acontecia uma vez por ano.
   Atordoado com a movimentação e preocupado em não deixar entrar ninguém sem convite, Jonas, o porteiro, sorria de forma automática para todos os foliões com as mais variadas fantasias.
   Jonas não estava fantasiado, mas sim com seu uniforme habitual, que o sinalizava como o conhecido porteiro do clube.
   A cada pessoa que entrava, um convite a mais era depositado na caixinha por Jonas. Cada folião daquele carnaval, entrava com uma fantasia diferente, talvez carregassem sonhos em suas vestes, ou somente brincadeiras.
   Adorava aquela profissão por causa disso, ao mesmo tempo em que sua imagem ficava marcada na cabeça das pessoas, as pessoas deixavam pinceladas em sua vida. Cada sorriso que passava era uma alegria para ele, cada perfume que suavemente sentia era uma viagem por histórias desconhecidas.
   Entre todos que entravam, uma colombina de olhos muito escuros e sorriso tímido entregou seu ingresso. Aquele simples gesto transformou o ar da festa para ele e para ela.
   A colombina não queria deixar a entrada do baile, mas teve de entrar, o porteiro queria que a festa acabasse para ver a colombina passar de volta pela porta.
   As músicas tocaram, o confete choveu e, ao som das badaladas da madrugada, os convidados começaram a sair. Em pouco tempo, Jonas percebeu que praticamente todos haviam saído, todos menos a colombina.
   Com as portas fechadas e os funcionários do clube comendo alguns petiscos e aproveitando o disco que ainda rodava, entrou no salão; em uma mesa ao canto, sentada, estava a colombina, tão impecável como se não tivesse dançado um passo sequer, e não tinha.
   Lena havia esperado com os guizos de sua fantasia por todo o baile, até o fim, pensando no porteiro e enfim, ele apareceu.
   Se encontraram no meio do salão sujo de confetes, iluminado por reflexos de um globo e sorriram, o único sorriso que valeu a pena para aquele porteiro e o único dado sem nenhuma timidez pela colombina.
   Enfim aquela festa foi completa, e o carnaval dos dois serpentineou até o amanhecer entre danças, flertes e varridas no salão. Nada demais aconteceu, o porteiro e a colombina teriam um ano inteiro até que pudessem se fantasiar de casal no próximo carnaval.


                                       Aluã Rosa


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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A pequena loja de histórias

  
 Competindo seu espaço na rua com os grandes lojões de variedades, estava ela, pequena e em cores discretas; uma porta com sineta ao lado de uma janela improvisada como vitrine faziam a fachada do estabelecimento, que, por muitas vezes era ignorado pelos passantes.
   “Loja de histórias” era o que dizia o letreiro, sem explicações, essa era a única definição. Não se tratava de uma livraria ou de uma empresa de contadores  de histórias, lá dentro você poderia encontrar o que muitas pessoas desprezam, esquecem, jogam fora.
   Por todas as prateleiras, cantos, caixas, em qualquer lado em que se pudesse olhar no pequeno cômodo, via-se garrafas. Garrafas de vidro, de plástico, de lata, garrafas compridas, roliças, coloridas. Todas vazias.
   Dante, o atendente e também dono da loja, passava o dia atrás de um minúsculo balcão esperando por algum cliente que pudesse entrar, mesmo que sem compromisso, sem levar nenhum produto, pelo menos que perguntasse o sentido daquilo tudo.
   Quase três anos mantendo seu projeto, alimentando diariamente a mesma esperança e nunca lhe havia aparecido alguém interessado. Três anos de sua juventude trabalhando em algo que nunca fora apreciado por ninguém.
   Num fim de tarde, já no término do encerramento do expediente, quatro pessoas entraram na loja. A felicidade, o espanto e a ansiedade de Dante eram tão grandes que nem percebeu que se tratavam dos seus melhores amigos do tempo da escola. Desde a formatura não os via, tinham perdido.
   Os cinco amigos se abraçaram, conversaram, e relembraram como eram felizes quando estudavam juntos. Um dos amigos tinha resolvido empenhar todas as suas forças na tentativa de buscar cada um e poder juntar novamente o grupo.
   Em meio as conversas, foi  impossível que não viesse a pergunta. “Mas afinal, qual a explicação pra essas garrafas?”.
   Como sempre tinha sonhado, Dante começou sua explicação.
   “Acredito que cada uma dessas garrafas, ao ser esvaziada teve uma história diferente, que cada uma delas participou de uma festa diferente, de despedidas, de reencontros como o nosso, com choro ou muito riso; essas histórias ficam guardadas dentro delas esperando que alguém as relembre ou simplesmente guarde junto de si. Ofereço a quem quiser, e enquanto ninguém  aceita, tenho todas as histórias aos meus cuidados.”
   Um pouco surpresos com o pensamento do amigo, mas também tocados por aquela sensibilidade, os quatro visitantes o convidaram para uma pequena comemoração de reencontro.
   Sairiam e poderiam se divertir do mesmo modo como quando eram mais jovens. No meio do caminho, uma parada para comprar um vinho.
   Dante não seria mais o solitário vendedor de histórias, teria sempre seus amigos para apoiá-lo, mas naquela noite não precisaria se preocupar com o futuro. Naquela noite ia poder gravar sua própria história naquela garrafa com os amigos.


                                                    Aluã Rosa

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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A negra e o camafeu

 Noite passada ao ser obrigado a arrumar meu quarto, tive de tirar tudo do lugar e no meio da arrumação sentei-me na cama para descansar um pouco, foi quando percebi um leve brilho dourado vindo debaixo de minha escrivaninha, de algum modo sabia do que se tratava; foi como se toda aquela madrugada tão macabra e assustadora passasse como um filme em minha mente, ainda mais pelo fato de que tudo acontecera exatamente ali, em meu quarto.



  Estava claro lá fora, como numa típica madrugada nordestina; em meu quarto, com as cortinas fechadas, a penumbra consumia todo o ambiente, exceto por um canto onde uma vela sobre um velho criado-mudo marrom que resistia à escuridão. Estava cansado, mas a insônia não me deixava dormir, então para passar o tempo perambulava pelo quarto, e fui assim até as três; acabei por deitar-me e cai no sono.

  Aquele brilho ficava cada vez mais forte à medida que as lembranças iam aparecendo. A essa altura qualquer dúvida deixara de existir, era o camafeu. Peguei-o e ao abri-lo a imagem era horrenda – gritei.

  Não sei se era um cântico ou um grito de dor, mas viera forte e me acordara, levantei-me assustado e olhei para o relógio, minha visão ainda aturdida pelo despertar brusco não me permitiu ver as horas. Esfreguei os olhos esforçando-me para enxergar algo, porém a escuridão era maior agora, a vela tinha se apagado. Fui até a janela e abri as cortinas a fim de trazer um pouco de claridade ao ambiente; espantei-me ao ver que o céu enegrecera, explorei o jardim em busca de um foco de luz, foi quando a vi, seu longo vestido branco-marfim a destacava de todo o resto, sua pele negra dava-lhe um contraste fascinante, seus cabelos encaracolados brilhavam úmidos pelo sereno, o rosto não conseguia ver, pois estava voltada para algum ponto no horizonte, de repente começou a bailar pelo jardim. Parou.
  Quanto mais a observava mais minha respiração fazia-se ouvir. Num instante olhava para longe como da primeira vez e no outro me encarava decididamente. Não tive reação e fiquei ali, observando-a a me observar; de repente sumiu. Aproximei-me da janela tentando achá-la e ao mesmo tempo encontrar uma explicação para tudo aquilo.
  Fechei as cortinas, reacendi a vela sobre o criado-mudo e acendi outra, esta coloquei em cima da escrivaninha. Virei-me para o centro do quarto onde ficava minha cama.
 - Oh meu Deus! O que é isto? – gritei perplexo.
   Ela estava deitada ali na minha frente, seu volumoso vestido caia pelas beiradas da cama. Tentei correr, mas o estado de choque em que me encontrava inibira quaisquer tentativas de reação; ficamos ali por minutos: eu imóvel em pânico e ela serena, imaculada, maravilhosa. Agora conseguia ver claramente, mesmo com a baixa luminosidade, sua face, era de um negro vivo, seus traços sutis e sem nenhuma imperfeição.


  Já acostumado com sua presença, recobrei os sentidos, andei em sua direção e sentei-me ao seu lado à cama; realmente era de uma beleza rara, acariciei sua face e percebi que tinha junto ao colo um colar dourado com um pingente daqueles que se colocam fotos; um camafeu, abri-o com esperança de saber um pouco mais, na verdade apenas saber, sobre aquela mulher que repousava tão calmamente em minha cama, no entanto não tinha nada lá, fechei-o. Olhei novamente para seu rosto, mas agora me olhava, seus olhos vermelhos cor de sangue emanavam uma dor tão grande que até consegui sentir, desta vez meus reflexos funcionaram e me levantei com tamanha velocidade que me desequilibrei e caí esbarrando na vela sobre a escrivaninha que fora arremessada contra as cortinas; a força do impacto fora tão forte que fiquei num estado de semi-inconsciência, mas pude perceber que havia fogo por toda a parte e que ela viera até mim e beijara-me a boca. Desmaiei.

  Não consigo me lembrar do que aconteceu depois, só recobrei os sentidos no hospital, o estranho é que mesmo com o incêndio não tive ferimentos graves.
  A imagem que agora residia no camafeu era horrenda.
  Em um papel fotográfico velho uma linda negra ao lado de um rapaz queimado, com chagas espalhadas por todo o corpo, em sua face era evidente a agonia e a dor, já na mulher uma satisfação verdadeiramente atordoante.

  Enterrei o camafeu longe de casa e espero nunca mais ter de ver aquela mulher novamente, mas parece que quanto mais tento apagá-la de minhas lembranças mais ela vem nas madrugadas atormentar meus sonhos. 

                                                                      Samuel Bernardes


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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Sentimento no papel


  E aqui estou eu de novo escrevendo mais um texto para você. Um texto que você nem ao menos sabe que existe.
   E eu te odeio por isso, por ter estilhaçado meu coração e ter sumido, deixando-me a árdua tarefa de colar cada pedaço dele.
   Eu odeio o fato de sonhar com você às vezes e acordar suspirando, e odeio lembrar desse seu sorriso e do som de suas gargalhadas.
   Eu odeio as sensações que tomam conta de mim quando você se aproxima.
   E esse ódio é ainda maior quando depois de tanto trabalho para colar cada caquinho de coração, você reaparece e me faz perder a banca.
   Eu odeio estar chorando enquanto escrevo isso.
   Odeio não poder mandar nos meus sentimentos.
   Mas maior que esse ódio por você é o ódio que tenho por mim, por não conseguir te esquecer, nem por um segundo sequer.

                                          Bruna Pettean



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sábado, 1 de fevereiro de 2014

Círculo Vicioso


Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:

- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:



- Pudesse eu copiar o transparente lume, 
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:



- Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela 
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:



- Pesa-me esta brilhante aureola de nume... 
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?


Machado de Assis