sábado, 26 de julho de 2014

Avó de tranças

Depois desse mês de férias, nosso blog volta nesse dia de Santa Ana, protetora dos avós com texto quentinho nesse fim de semana gelado de inverno.

Avó de Tranças

A avó sentava-se todo dia naquele mesmo banco, no mesmo canto, na mesma casa, na mesma rua. Com aquele mesmo rosto cansado, as duas compridas tranças caídas pelas costas e o vestido florido combinado com uma blusa de lã como sempre fazia, no frio ou calor desde... Desde que assumiu o posto de avó.
Ali no banquinho viu seus netos correndo pela casa e sorriu de seus tombos inocentes, sentiu falta quando cresceram e não apareceram mais em casa.
Mais uma vez a avó estava sentada no seu banco com suas tranças, mais uma vez naquela casa. Começava a chover. Um carro parou na frente  da calçada bem devagar, um guarda chuva se abriu na posta de trás, e depois de alguns movimentos desajeitados, a cadeirinha foi retirada e vieram, guarda chuva, cadeirinha e pessoas em passos lentos até a entrada da casa.
A avó já não se lembrava direito do nome dos netos, não por sua culpa, mas algo tirou essas memórias de sua cabeça, mas sentia que era uma visita importante.
A mulher, que já segurava o bebê em seus braços, não mais na cadeirinha, disse: “Oi, vó! Olha aqui sua bisneta”. E sentou-se ao lado no banco, com a criança dormindo quieta no colo.
A avó, mesmo sem se lembrar direito das pessoas, colocou a mão na cabeça da pequena criança e com uma carícia, abençoou sua vida. Sorriu devagar.
A menina acordou, e com seus olhos de bebê passou a explorar a casa estranha em que estava. O quadro do Sagrado Coração já desbotado pelo tempo, pendurado na parede de toda avó que se preze, os vasinhos de flor sobre pequenas toalhas redondas de crochê na estante, as almofadas de retalhos coloridos nos sofás.
Reconhecendo a casa da avó e suas mãos reconfortantes dormiu novamente.
Depois de algum tempo estaria correndo com os primos naquele piso de caquinhos alegrando a casa novamente. E a avó, a avó sentada no banco com as duas tranças emoldurando seu rosto, sorriria novamente com a bagunça dos bisnetos, ali, na mesma casa, na mesma rua.


                      Aluã Rosa



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sexta-feira, 20 de junho de 2014

O passeio do Rei

www.jornalvozativa.com Foto: Tino Ansaloni
   
   Num reino não muito distante de nós, nem muito antigo, nem muito novo, havia um Rei.
   Ah, Como era bom aquele Rei, o povo o adorava, desde os mais humildes servos e camponeses até os nobres mais nobres, todo o seu povo o amava.
   No passado, quando o reino sofria pelos ataques dos inimigos, o Rei salvou a todos com uma prova de bravura e amor nunca vista antes.
   Por todos os lugares o Rei era lembrado, exaltado. Em todas as casinhas ele se fazia presente, nos pensamentos, nas conversas, nas canções. O Rei habitava o coração de seus súditos.
   Estava disponível, sempre, em sua morada oficial, para receber a quem precisasse.
   Todas as pessoas que quisessem podiam encontrar-se com o Rei, a qualquer hora, a qualquer dia da semana. Era um refúgio.
   Lá, o Rei ouvia, aconselhava, abençoava, ou simplesmente acalentava a cada um com seu simples olhar compreensivo e amoroso.
   Mas havia um dia, uma festa, em que o rei saía de sua morada para andar pelo reino, em pessoa.
   Ah que festa o dia da caminhada do Rei, que bonito de se ver! A pessoas enfeitavam as janelas, usavam suas melhores roupas.
   Nas ruas não se via uma pedra, pois os súditos espalhavam tecidos coloridos, flores, papéis e tudo mais que poderia servir para decorar o local dos passos do Rei.
   Das pessoas mais pobres até as mais ricas e poderosas, todas se uniam para homenagear o Rei da melhor forma que conseguiam, pois sabiam que nenhum poder era maior que o dele.
   E o Rei, na hora marcada, saía pelas ruas enfeitadas mirando com seus olhos a todos seus fiéis súditos e pisando cuidadosamente por aqueles “tapetes” tão humildes e tão dignos de sua passagem.
   O Rei passava, abençoava o povo e depois voltava para sua morada onde continuava recebendo a quem precisasse, a qualquer hora.
   E pela cidade ficava o doce aroma de sua presença magnífica, na memória das pessoas seu sorriso tão acolhedor e gentil, e nos corações daquele povo ficava seu amor. Para sempre.

                 Aluã Rosa

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sábado, 14 de junho de 2014

Bandeira de retalhos

Imagem disponível em:  http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/fotos/2014/06/leitores-enviam-fotos-de-ruas-enfeitadas-para-copa.html
   
   Do teto dos bares da cidade pendem fitinhas verdes e amarelas que dançam ao bater do vento.
   De janelas, sacadas e postes, bandeiras do Brasil esvoaçam e vibram com a torcida brasileira.
   No asfalto sem movimento dos bairros, figuras ilustres, bolas e listras são pintadas nas cores da nação.
   Até as flores amarelas resolveram desabrochar em meio suas verdes folhas em comemoração.
   O dia começou diferente. Nos jornais, na televisão, nas ruas da cidade, em tudo havia um clima festivo, não era somente mais um dia ensolarado brasileiro.
   Com os olhos de todo o mundo voltados para o país e turistas, irmãos de outras nacionalidades chegando para confraternizar, para jogar, a festa estava prestes a começar, de norte a sul, em cada canto dessa terra adorada.
   Mesmo sem a casa totalmente pronta para receber os convidados, o evento aconteceria; alguns problemas, alguns atrasos, e um povo trabalhador sofrendo com os desmandos de quem deveria organizar tudo, mas a família de brasileiros não negou seu sorriso a cada um que queria torcer, vibrar.
   Aconteceu, cada coração brasileiro pulsou mais forte, e em coro bradou o hino de sua terra mãe, a bola rolou, as mãos se levantaram, as gargantas gritaram, e a união tomou conta de vez de cada pessoa, em cada estado, em barracos, sítios e mansões, tudo se tornou uma só massa que vibrava.
   Começou, enfim, a copa do mundo, e não há mal em participar dessa grande festa entre nações. Já está acontecendo.
   De bandeira em bandeira, de fita em fita, a cada pincelada verde, amarela ou azul que é traçada, o chão do nosso país se colore para brindar com todas as nações sua humilde festa do futebol. Todos juntos, numa grande bandeira de retalhos e rostos que se estica para abraçar o mundo.

           Aluã Rosa


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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Oratório


   Com suas pequenas e tortas estrelinhas pintadas de amarelo no fundo azul da madeira envelhecida, os dois pequenos vasos sempre com flores frescas do quintal e os anjinhos rechonchudos já descascando, velava toda a casa o antigo oratório do alto da cômoda onde se apoiava, protegendo com suas frágeis paredes a pequena imagem da Vigem Maria e um crucifixo que os antepassados, imigrantes italianos, haviam trazido de seu país.
   A família, de muita fé, conservou muito bem o oratório que os acompanhou na difícil vinda ao Brasil. Trouxeram-no em meio às roupas da bagagem naquele navio apinhado de pessoas, e passavam os piores momentos da viagem agarrados àquela malinha que escondia precioso tesouro.
   Desde a chegada daqueles italianos, o oratório nunca mudou de lugar, na humilde casinha de poucos móveis, sobre a cômoda onde se guardavam as roupas, à luz do grande lampião que clareava toda a residência.
   Assistiu partos, prantos, gritos de alegria.
   Gerações e gerações passaram horas ajoelhadas rezando a sua frente. E o oratório sempre lá, sempre disposto a mais um Glória ao Pai, assim como os ouvidos de Deus que nunca se cansam de acolher as nossas preces e pedidos de perdão.
   Os respingos de cera amarela se sobrepunham no lugar onde tantas vezes foram acesas velas em agradecimentos, novenas, festas.
   Nas datas mais importantes do ano era difícil algum horário em que ninguém estivesse dedicando alguma atenção ao oratório.
   Todos os dias depois do jantar, a família toda se reunia para rezar por mais um dia vivido.
   Daquela forma, mães se tornaram avós, depois bisavós, tataravós. Muitos fios de cabelo tornaram-se brancos.
   A família modificou-se. Cresceu, trabalhou, evoluiu, mas sua base sempre continuou a mesma, seu alicerce foi mantido, e com isso, por mais que crescesse, sempre estaria firme.
   Os novos, mesmo os que nunca tiveram contato com os primeiros donos daquele oratório, receberam por herança a fé, e continuam a propagá-la, não deixam que a chama se apague, que tudo se desfaleça.
   Assim, mesmo com as tantas décadas já passadas, e as que ainda prometem vir, as portas daquele oratório nunca se fecharam uma vez sequer, nem hão de ser fechadas, pois muito mais do que suas tortas estrelinhas amarelas e suas imagens sagradas, guarda as firmes raízes daquela família, o amor e o cuidado de um Pai por seus filhos.

Aluã Rosa



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sexta-feira, 2 de maio de 2014

Pipocas na estação

  

    Mesmo depois de tanta insistência, Dora fora obrigada a ir para o colégio interno na capital.
   Seus pais não aprovavam a íntima amizade com o vendedor de pipocas da pracinha.
   Na noite anterior, tinham se encontrado pela última vez, conversado pela última vez. Comeram o último saquinho de pipoca juntos, sentados na escada do coreto.
   É difícil viver em uma época em que as famílias ricas não permitem o relacionamento dos seus com pessoas de classes mais baixas.
   Simão, o pipoqueiro, não se conformava com a partida de Dora, e ela, com a distância dele e suas ingênuas conversas.
   O apito do trem soava por toda a estação, prestes a partir. Em meio a vapores e passantes,    Dora saltou da plataforma para o vagão.
   Do outro lado da estação, Simão corria entre as pessoas para atravessar o saguão e chegar até perto do trem, queria se despedir mais uma vez.
   Amassado, bem seguro em uma das mãos do rapaz, ia um saquinho de pipoca.
   Após um encontrão com os pais de Dora na entrada da estação que quase o fez perder seu presente, precisou correr mais.
   Percebeu de repente as rodas começaram a se movimentar, um súbito de tristeza e força de vontade se misturaram em seu corpo,saltou, correu o mais que pôde, conseguiu avistar a janela de sua tão adorada amiga.
   Dora, sorridente e surpresa abriu a janela a seu lado, Simão corria agora rente ao limite da plataforma. Com o braço esticado, tentava entregar o saquinho à Dora, como um presente, uma lembrança, como um beijo.
   Sentiu braços fortes o segurarem, foi puxado para trás, o saquinho voou de sua mão.
   Entre pipocas, guardas e gritos, desfazia-se o sonho de um pobre coração.

   Aluã Rosa

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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Amigo passarinho

  

   Todos os dias enquanto caminhava para a escola, a um certo ponto do caminho era surpreendido por um canto de  passarinho vindo de uma grande árvore.
    Eu olhava pra cima, procurava entre os galhos, mas nunca via nada além das folhas.
    Muitas vezes captava algum movimento no meio da copa, ficava em dúvida se era vento ou o tal cantor, logo desistia da procura e voltava a caminhar rumo às aulas.
    Em dias em que estava mais inspirado, saía mais cedo de casa e levava alguns pedaços de pão, parava ao pé da árvore, enroscava os petiscos nos galhos mais baixos e esperava. O passarinho não descia para comer. Quando voltava da escola, o pão não estava mais no lugar.
    Me impressionava muito o fato de o passarinho nunca deixar de cantar, nenhum dia. Mesmo quando chovia ou fazia muito frio.
    Um dia, já irritado pelo jogo de esconder do passarinho cantor, num ato não pensado, abaixei, peguei uma pedra e atirei em direção ao som na árvore. Houve um barulho de asas batendo nas folhas, o canto parou, a pedrinha caiu no chão. Percebi a besteira que tinha feito e entrei em desespero. Como alguém poderia ser tão egoísta ao ponto de tentar machucar um pobre animal pela própria curiosidade?
    “Passarinho! Passarinho!” Gritei preocupado. Mas logo o cantor me respondeu, num assovio atordoado.
    Naquele dia não continuei meu caminho, passei a tarde sentado nas raízes da árvore para ter certeza da recuperação do passarinho. Ele cantou algumas vezes, a cada melodia melhorava um pouco, o susto tinha passado. Quando o sol começou a se esconder no horizonte e o céu ficou alaranjado percebi que precisava voltar para a casa.
    “Me desculpe, passarinho! Eu só queria conhecer a cor das suas penas” Falei para o alto, para meu amigo cantor.
    Um farfalhar nas folhas foi descendo pelos galhos até chegar à minha altura, um longo pio me cumprimentou e o pequeno passarinho empoleirou-se em meu braço. Cantou uma melodia nova e afinada, exibiu suas cores e voltou para a árvore.
    Nos dias que vieram depois, sempre que passava pela árvore, percebia as penas do cantor se movendo nos galhos mais baixos durante o pequeno show entre as folhas.
    Os meses passaram rapidamente e o inverno chegou. Talvez meu amigo tenha migrado, não houve despedida, na verdade, nem me lembro da última vez em que ouvi seu canto, mas sei que quando a primavera deu o ar de sua graça, eu já caminhava desatento e sem esperanças para a escola quando um som me despertou.
    Trazendo de volta a alegria daquela árvore o passarinho cantou. Ecoou.

Aluã Rosa


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sábado, 19 de abril de 2014

Velado sorriso


   A umidade da já findada garoa pairava pelo ar e ajudava a brisa a cortar mais gelidamente a pele daquelas pessoas.
   O chão de paralelepípedo fazia leves barulhos a cada passo da procissão que seguia.
   Roupas escuras, janelas fechadas, o som de um coro desarmônico de vozes em oração. Chegara a semana santa.
   A cidade desfazia seu sorriso interiorano e assumia a seriedade do acontecimento. O clima era profundo, não chegava a denotar medo, mas causava um certo recolhimento em cada ser, em cada família, em cada 
palavra.
   Os dias caminhavam mais calmos e a cada celebração o povo se reunia para se aproximar cada vez mais do auge, do clímax, da Paixão.
   Todos os anos, desde muito tempo atrás isso se repete; os mesmos sons, os mesmos ritos, o mesmo sentido. Faz parte da vida.
   Mesmo os mais afastados voltam nessa época, talvez por ter aprendido desde crianças a importância dessa semana, ou simplesmente por sentir ar diferente presente nesses dias, a grandioso significado de tudo.
   É assim. E assim caminha a vida, rememorando os passos do passado que permitiram a existência desse presente. 
   O vento, o frio, os dias silenciosos. De uma noite angustiante à outra de um fogo novo, a traição, a entrega, a consumação. Tudo acontece novamente aos nossos olhos.
   Na aurora de um novo dia, a vida renasce, o sol aquece novamente os corações, a esperança é celebrada.    É domingo, é Pascoa. E no domingo... A cidade sorri novamente.

         Aluã Rosa

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