sexta-feira, 25 de abril de 2014

Amigo passarinho

  

   Todos os dias enquanto caminhava para a escola, a um certo ponto do caminho era surpreendido por um canto de  passarinho vindo de uma grande árvore.
    Eu olhava pra cima, procurava entre os galhos, mas nunca via nada além das folhas.
    Muitas vezes captava algum movimento no meio da copa, ficava em dúvida se era vento ou o tal cantor, logo desistia da procura e voltava a caminhar rumo às aulas.
    Em dias em que estava mais inspirado, saía mais cedo de casa e levava alguns pedaços de pão, parava ao pé da árvore, enroscava os petiscos nos galhos mais baixos e esperava. O passarinho não descia para comer. Quando voltava da escola, o pão não estava mais no lugar.
    Me impressionava muito o fato de o passarinho nunca deixar de cantar, nenhum dia. Mesmo quando chovia ou fazia muito frio.
    Um dia, já irritado pelo jogo de esconder do passarinho cantor, num ato não pensado, abaixei, peguei uma pedra e atirei em direção ao som na árvore. Houve um barulho de asas batendo nas folhas, o canto parou, a pedrinha caiu no chão. Percebi a besteira que tinha feito e entrei em desespero. Como alguém poderia ser tão egoísta ao ponto de tentar machucar um pobre animal pela própria curiosidade?
    “Passarinho! Passarinho!” Gritei preocupado. Mas logo o cantor me respondeu, num assovio atordoado.
    Naquele dia não continuei meu caminho, passei a tarde sentado nas raízes da árvore para ter certeza da recuperação do passarinho. Ele cantou algumas vezes, a cada melodia melhorava um pouco, o susto tinha passado. Quando o sol começou a se esconder no horizonte e o céu ficou alaranjado percebi que precisava voltar para a casa.
    “Me desculpe, passarinho! Eu só queria conhecer a cor das suas penas” Falei para o alto, para meu amigo cantor.
    Um farfalhar nas folhas foi descendo pelos galhos até chegar à minha altura, um longo pio me cumprimentou e o pequeno passarinho empoleirou-se em meu braço. Cantou uma melodia nova e afinada, exibiu suas cores e voltou para a árvore.
    Nos dias que vieram depois, sempre que passava pela árvore, percebia as penas do cantor se movendo nos galhos mais baixos durante o pequeno show entre as folhas.
    Os meses passaram rapidamente e o inverno chegou. Talvez meu amigo tenha migrado, não houve despedida, na verdade, nem me lembro da última vez em que ouvi seu canto, mas sei que quando a primavera deu o ar de sua graça, eu já caminhava desatento e sem esperanças para a escola quando um som me despertou.
    Trazendo de volta a alegria daquela árvore o passarinho cantou. Ecoou.

Aluã Rosa


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sábado, 19 de abril de 2014

Velado sorriso


   A umidade da já findada garoa pairava pelo ar e ajudava a brisa a cortar mais gelidamente a pele daquelas pessoas.
   O chão de paralelepípedo fazia leves barulhos a cada passo da procissão que seguia.
   Roupas escuras, janelas fechadas, o som de um coro desarmônico de vozes em oração. Chegara a semana santa.
   A cidade desfazia seu sorriso interiorano e assumia a seriedade do acontecimento. O clima era profundo, não chegava a denotar medo, mas causava um certo recolhimento em cada ser, em cada família, em cada 
palavra.
   Os dias caminhavam mais calmos e a cada celebração o povo se reunia para se aproximar cada vez mais do auge, do clímax, da Paixão.
   Todos os anos, desde muito tempo atrás isso se repete; os mesmos sons, os mesmos ritos, o mesmo sentido. Faz parte da vida.
   Mesmo os mais afastados voltam nessa época, talvez por ter aprendido desde crianças a importância dessa semana, ou simplesmente por sentir ar diferente presente nesses dias, a grandioso significado de tudo.
   É assim. E assim caminha a vida, rememorando os passos do passado que permitiram a existência desse presente. 
   O vento, o frio, os dias silenciosos. De uma noite angustiante à outra de um fogo novo, a traição, a entrega, a consumação. Tudo acontece novamente aos nossos olhos.
   Na aurora de um novo dia, a vida renasce, o sol aquece novamente os corações, a esperança é celebrada.    É domingo, é Pascoa. E no domingo... A cidade sorri novamente.

         Aluã Rosa

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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Uma história sobre maçãs

   
Na larga rua, em meio aos carros, trabalhava a vendedora de maçãs.
   Com sua velha cesta e sincera simpatia, ganhava a vida vendendo as vermelhas e suculentas maçãs do sítio de seu tio.
   A rua era movimentada, muitos carros iam e vinham, buzinavam, passavam reto, quando paravam eram abordados pela vendedora.
   Órfã, criada pelo tio, precisou deixar a escola para cuidar do pai postiço que estava doente.    Muitos questionavam a situação da moça, a doença do tio, os estudos abandonados, as maçãs.
   Nunca havia uma explicação.
   As maçãs eram muito significativas na vida dos dois. Quando pequena, a vendedora foi salva da fome pelas maçãs do tio, agora, queria poder retribuir o cuidado, com as mesmas frutas que a salvaram na infância.
   O tio melhorava à medida que as maçãs eram colhidas.
   Um dia a moça não apareceu com seu cesto na grande rua. Passados cinco dias, nem sinal da vendedora. Somente algumas pessoas perceberam sua ausência.
   Não havia mais maçãs para vender, a macieira parou de dar seus frutos. Ventos frios balançavam suas folhas e as cortinas do quarto do tio doente.
   A vendedora agora trabalhava o dia todo em função da saúde do tio, que piorou muito depois do fim das maçãs.
   Olhando pela janela, a moça avistou algo surpreendente, em meio às folhas já meio secas da árvore, pendia uma grande e vermelha maçã. Era apenas uma, não ajudaria no tratamento se vendida.
   Saiu da casa, colheu a grande fruta e levou para o quarto do tio. Colocou sobre o criado mudo e esperou. O forte aroma tomou conta de todo o ambiente, o senhorzinho deitado respirou mais profundamente para sentir melhor. Um sorriso de agradecimento se desenhou em seu rosto.
   A vendedora, salva pelas maçãs do tio quando criança tentou retribuir o gesto, mas ao invés disso, fechou os olhos e sentiu também o aroma que vinha do criado mudo.
   No doce cheiro que envolvia o quarto, sonharam, e chegou ao fim a história dos dois. E das maçãs.


     Aluã Rosa

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sábado, 5 de abril de 2014

Grand Circo Saudade

   


   A lona furada já não abrigava tantos risos como antigamente.
   Rodando cidades e estados sobre aquele caminhão velho, muita história tinha se passado por todos aqueles objetos, equipamentos, todas aquelas cores desbotadas.
   Niam olhava tudo aquilo sentindo em seu peito um misto de nostalgia e tristeza.
   Filha de um mágico e uma amazona, crescera em meio a tudo aquilo, aqueles brilhos, aquelas palmas, o som de tanta risada.
   Hoje, em seu aniversário de 18 anos, pulsava em seu peito como nunca o sonho que sempre cultivou desde a infância. Morar em um lugar fixo, ter uma casa de tijolos, um endereço; não que a vida no circo fosse ruim, muito pelo contrário, amava a vida sobre rodas, dormindo sob tendas e estrelas, mas queria sentir o novo, o fixo. Sua aventura seria a rotina.
   Naquela manhã chegariam a mais um destino, o Grand Circo Saudade seria montado num campinho, ao lado da praça central da cidade e da igreja matriz de Colina Grande; era a chance de concretizar seu plano.
   Foi muito dolorido, mas a decisão estava tomada e Niam não voltaria atrás.
   Naquela escura noite de verão começava mais um espetáculo do Saudade, os palhaços maquiados, os truques preparados, as luzes acesas, toda a magia do show escondia uma família preocupada e inconformada pela decadência de seu ganha pão. As esperanças de um bom público depositadas a cada sessão eram sempre maiores.
   Depois de seu número, o primeiro apresentado, Niam correu para sua tenda, pegou a mala cuidadosamente disfarçada entre os cobertores, carregou Palhaço, seu coelho de estimação, colocou aos pés da antiga imagem de São Filomeno, padroeiro dos artistas de circo, a carta cheia de lágrimas e explicações a seus pais e aos amigos de tenda, vestiu um casaco grande demais e saiu.
   Começava a chover na cidade, as gotas de água escorriam frias como as lembranças de sua encerrada vida sem paradeiro que vinham à sua cabeça enquanto podia ver a luminosidade fosca vinda de dentro da lona. Andava depressa com medo de desistir e desfazer os passos já dados.
   Triste por abandonar sua família, perdida por não saber onde iria se abrigar, mas feliz por estar realizando seu sonho, estar crescendo, evoluindo, sabia que seria difícil, que pensaria em desistir várias vezes, mas ia tentar, pois sabia também que quando fosse necessário, quando as lágrimas fossem numerosas demais poderia procurar nos jornais, pedir informações, retornar até sua lona e abraçar o Saudade novamente.
   Ao fim do espetáculo, debaixo da forte chuva, a equipe do circo agradecia ao público e deixava naquela colina, uma raiz de saudade.

 Aluã Rosa

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