sexta-feira, 28 de março de 2014

O teatro de Cosme


  Os calorosos aplausos já minguavam enquanto as cortinas empoeiradas iam se fechando. Depois dos agradecimentos, soltando as mãos, toda a trupe comemorou entre abraços o encerramento de mais um espetáculo.
   Enquanto alguns limpavam a maquiagem, outros desligavam as luzes do antigo teatro alugado. Um suave cheiro de mofo pairava no ar, o acolchoado das poltronas estava desbotado e o chão rangia ao ser pisado, mas era um ambiente acolhedor.
   Em tempos passados tinha sido famoso, recebido artistas renomados e frequentado por nobres figuras da região.
   Nos últimos anos tinha funcionado poucas vezes, quando alguma pequena companhia se apresentava na cidade.
   Sentado no palco, ainda usando a boina de seu personagem, Cosme observava o espaço do teatro e seus colegas atores. Pensava em sua trajetória, a saída de casa, a criação da trupe junto com amigos. Baixou os olhos. Sorriu.
   Muitas vezes passava horas refletindo sobre como, com sua pequena trupe e seus sonhos teatrais poderia marcar o mundo, a cidade, ou no mínimo uma pessoa.
   Seguir os sonhos que teve foi difícil, abandonar sua vida anterior, a segurança do emprego para viver do que gostava, do que acreditava. Não havia nada melhor, para ele, do que o frio na barriga a cada descortinar de uma nova peça, ver os sorrisos arrancados de crianças e adultos e ouvir os aplausos da plateia ao fim de cada apresentação.
   Acreditava que para marcar o mundo não eram necessários grandes movimentos, projetos elaboradíssimos ou uma invenção surpreendente, estava contente em saber que fez a vida de algumas pessoas mais feliz, encantada, que pôde construir minutos de magia que ficariam marcados para sempre na memória simples das crianças, que fez pessoas já desacreditadas retomarem o brilho nos olhos mostrando a beleza de poder sonhar, sonhar acordado e colorir o caminho da vida com os lápis de cor da imaginação. Cosme marcou o mundo.

   Enquanto os pensamentos brincavam na cabeça de Cosme naquela noite, nas tortuosas ruas do entorno do teatro, pessoas retornavam para suas casas com os cachecóis balançando ao vento frio, tremendo, porém, com a alma aquecida pelas maravilhosas aventuras passadas a pouco no pequeno palco lustrado do teatro.

Aluã Rosa

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sexta-feira, 21 de março de 2014

Malabares de Outono

   

    Pelas grades da janela entravam os raios do sol que nascia inaugurando um novo outono.
   Cinco bolinhas de borracha repousavam na mesa de centro da sala ao lado de uma maleta.    No quarto ao lado, dois rostos cansados ganhavam cores a cada pincelada que desenhavam vagarosamente as curvas de inocentes faces de palhaço.
   O som de sirenes vinha de um lugar incerto. Buzinas anunciavam o começo de mais um dia de trabalho.
   Saíram do apartamento o casal, o bebê, bolinhas, garrafas e um chapéu. Por entre desconhecidos, carros e a efervescência daquela enorme cidade, partiram.
   No primeiro ônibus, o mesmo que pegavam todos os dias, alguns rostos conhecidos sorriam para a criança, outros achavam estranho o casal palhaço tomando o circular. Depois de 40 minutos, desceram.
   A curta caminha os levou até a creche pública em que o filho passava o dia.
   Tomando outro ônibus, segiram para o centro.
   Mal batia 8:00h no relógio e vestiram-se com as roupas coloridas do ofício. Uma saia surrada cheia de pompons, um colete fechado com botões enormes, fitas, uma gravata.
   No primeiro sinal vermelho dos carros, descortinou-se o asfalto e o trânsito deu lugar a arte.
   Os rápidos malabaristas enchiam de cores a faixa de pedestres. Bolinhas e garrafas voavam e rodavam em meio aos reflexos dos retrovisores.
   Depois de cada espetáculo, os sorridentes artistas passavam seu chapéu entre os carros. Motoristas encantados faziam-se plateia e contribuíam, alguns erguiam os vidros, outros ignoravam.
   Era um jeito diferente de ganhar a vida, fazia-os felizes.
   Ao fim de cada tarde, depois de incansáveis apresentações, contavam seu mirrado cachê e faziam o caminho de volta para a casa com o filho de 1 ano.
   Cansados e queimados de sol por fora, mas por dentro, felizes por poderem alimentar a família com moedas e amor, e alimentar aquela metrópole com um pouco de arte a cada dia.

Aluã Rosa

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sexta-feira, 14 de março de 2014

O anjo do chafariz


 No meio da praça daquela pequena cidade, tomando chuva e sol, vento e geadas, desde muito tempo, parado ficava o anjo em seu úmido pedestal.
   Invernos e verões passavam sem que quase ninguém se lembrasse dele. Ali, com suas várias camadas de tinta de várias épocas, os olhos fixados no além, as mãos postas a um louvor em jatos d’agua e ao som calmo da água corrente, velava ele toda a praça com suas asas de cimento.
   Muitas vezes, ignorado por todos que se divertiam nas tardes de domingo, servia como pouso para os pombos. Em certas épocas, chegou a ter parte de seu corpo coberta por musgos.
   Bolas o acertavam enquanto crianças brincavam, folhas o acariciavam nas tempestades ventosas. O anjo sempre respeitou sua função de estátua.
   Em dia de procissão músicas alegres o rodeavam, na primavera, flores perfumavam sua volta. Quem dera todos fossem como os pássaros que o visitavam.
   A cidade evoluía, gerações se sucediam, vidas começavam e terminavam diante do anjo e seu discreto sorriso.
   A população passava apressada e não tinha tempo para deleitar de sua companhia silenciosa. Desde o primeiro raio de sol da manhã até a última estrela da noite de todos os dias ele esperou.
   Um braço quebrado, uma asa trincada.
   Um menino e seu avô pararam para observar. Os olhos do avô brilharam de alegria ao rever o anjo amigo que tanto admirou secretamente na infância, os do neto, saltaram em encanto pela simpatia do encontro.
   Um cochicho. Os dois saíram.
   No meio daquela noite, o anjo retomou seu brilho novamente, ganhou asas novas e um braço consertado.
   Quando amanheceu, sorrisos e mãos apontavam para o anjo. Todos perceberam e se alegraram pela reforma. Ninguém sabia quem era o benfeitor, mas o agradeceram no coração.
   Muitas pessoas passavam devagar para apreciar a beleza do velho anjo do chafariz, pessoas que mesmo sem demonstrar, admiravam e simpatizavam com seu jeitinho parado e frio.
   Um pouco a frente, num banco voltado para o chafariz, um velho e um menino riam com as mãos sujas de tinta.

Aluã Rosa

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sexta-feira, 7 de março de 2014

Casinha


No fim daquela rua de paralelepípedos ficava a casinha.

Um amarelo desbotado coloria suas paredes, janelas e portas de madeira pintadas de branco ressecavam ao sol, entreabertas. O telhado tinha alguns buracos.

O capim crescia no jardim, já alto.

Nas noites em que a lua brilhava com mais intensidades, uma claridade esbranquiçada deixava o lugar com um aspecto mais fantasmagórico.

As crianças do bairro rondavam o terreno para investigar sobre as lendas que ouviam.

Ninguém ousava entrar.

Num dia, quando ninguém esperava, um caminhão de mudança estacionou na frente da casinha; desceram móveis muitíssimo antigos e objetos estranhos encobertos por tecidos brancos. Toda a vizinhança se perguntava quer iria habitar aquele sinistro endereço.

Por dias, viu-se a movimentação de encomendas entrando naquela construção, mas ninguém falava nada, explicava nada, arrumava nada. Os carregadores simplesmente deixavam as coisas e iam embora.

Ao fim da semana tudo parou, imaginavam que enfim o novo morador apareceria, ou que, no mínimo, todo o mato que rodeava a casa seria cortado, e o local, limpo.

No entardecer daquela sexta-feira, um carro vinho, todo polido, chegou na rua, andou devagar, parou em frente à casinha e uma das portas de abriu. Nada saiu do carro, ninguém desceu.

As janelas da casinha abriram e fecharam, batidas pelo vento.

O carro seguiu em frente.

Os vizinhos olhavam assustados entre as cortinas de suas casas.

A brisa leve trouxe o som de uma coruja que piava distante.

O dia seguinte amanheceu mais escuro e frio, as casas pareciam mais duras, mais distantes, a população daquele lugar agora era diferente, sem vida, sem nada.

Ninguém gostava de cruzar aquela rua, mesmo sendo uma passagem necessária para algumas pessoas, procuravam fazer outro caminho, por lugares mais alegres, mais normais.

Investigações foram abertas, curiosos apareceram para analisar o que teria acontecido com os moradores daquele lugar.

A cidade se voltou para aquela rua; soluções foram propostas, campanhas realizadas, a melancolia pairava sobre aquelas pedras de paralelepípedo.

Das ideias mais estranhas, uma muito simples foi aplicada. Numa manhã clara de sol, as pessoas mais alegres da cidade foram convocadas, se vestiram com as mais diferentes cores, entraram na rua, cantaram, fizeram graça. Alguns se atreveram a pintar de cores quentes as paredes das casas, distribuíram abraços, sorrisos e olhares felizes. Chegando perto da casinha, esforçaram-se e conseguiram entrar, a misteriosa onda de tristeza que se instalara nos cômodos desapareceu, talvez tenha fugido da felicidade que desfilava por aquela rua.

Tudo voltou ao normal.

Aluã Rosa



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